Wednesday, April 1, 2009

O Mundo Sólido de João Paulo Sousa


Directamente roubado do Da Literatura (http://daliteratura.blogspot.com/2009/03/capa-e-abertura.html)

«Esta é a capa do meu romance O Mundo Sólido, editado pela Deriva, que chegará às livrarias na segunda quinzena de Abril. Ainda nesse mês, será apresentado em Lisboa, a 23, e no Porto, a 29. Mais adiante, darei todas as informações sobre os lançamentos. Para já, aqui fica a abertura da obra:

Ao fim de um dia cansativo no gabinete, em que toda a minha atenção se concentrara no projecto da nova biblioteca de Ravenna e me levara a passar parte da hora de almoço a compor sucessivos desenhos sobre guardanapos de papel, e após um lento regresso ao apartamento em que vivo com a Paola, em parte devido à certeza de não a encontrar à minha espera, em parte para libertar o pensamento dos esquissos e traçados que o haviam ocupado durante tanto tempo, encontrei, na caixa do correio, entre inúteis folhetos publicitários e dois sobrescritos de aparência institucional, uma carta do meu filho, que me apressei a abrir, onde ele me anunciava que não seria pai. O texto era breve e estava impresso numa folha branca, demasiado branca, sem uma única palavra escrita à mão, nem mesmo o nome no fim a assinar, permitindo pensar que outra pessoa o teria redigido, mas eu não quis admitir essa possibilidade, embora ela talvez me houvesse tranquilizado um pouco. Com a carta na mão esquerda, aberta sobre a restante correspondência, detive­‑me à saída do elevador, como se de repente tivesse esquecido o que fazia ali e as escadas à minha direita e a porta em frente não me fossem familiares, como se as paredes tivessem adquirido uma redobrada espessura para que não me restassem dúvidas sobre a sua opacidade, sobre a total impossibilidade de as transpor, como se o mundo quisesse excluir­‑me e anunciasse o seu propósito com uma violência silenciosa. Não me mexi quando a luz das escadas se apagou e fiquei rodeado por uma escuridão quase total, apenas contrariada pela clarabóia do telhado, que deixava passar suficientes vestígios de uma noite clara ou da iluminação pública para que o meu olhar forçasse o negrume e aos poucos recuperasse os contornos das formas que me cercavam. Só consegui libertar­‑me da imobilidade quando ouvi uma porta a abrir­‑se e, por não ter conseguido localizar a proveniência do som, receei que se tratasse da vizinha de cima e que ela pudesse descer pelas escadas e me encontrasse ali parado, à porta de casa, em completo silêncio, o que teria aproveitado de imediato para me acusar de estar a espiá­‑la, de andar a espiá­‑la há muito tempo, como já uma vez dissera. Falaria em voz muito alta, como então havia feito, para que os outros moradores do prédio ouvissem e aparecessem nos patamares, provocaria um escândalo para gritar mal de mim e da Paola, por isso abri depressa a porta do apartamento e meti­‑me lá dentro antes sequer de acender uma luz. Tacteei até à sala e atirei­‑me para cima de um sofá, onde, no intuito de me libertar da agitação nervosa e irracional que crescera dentro de mim nos últimos minutos, abandonei os papéis e as chaves que me ocupavam as mãos e massajei lentamente o rosto com as pontas dos dedos. Enquanto repetia o movimento devagar, para forçar a minha respiração a adaptar­‑se a esse ritmo e regressar à sua cadência habitual, pensava que não deveria ter aberto a carta sem a presença da Paola, não deveria sequer ter aberto a caixa do correio, nunca deveria ter feito nada tão potencialmente perigoso sem que a Paola estivesse por perto e pudesse intervir e acalmar­‑me se tal fosse necessário. Tentei imaginar o que ela me teria dito se estivesse comigo naquele momento, mas esse esforço, que me obrigou a rever mentalmente a carta pousada ao meu lado e a rememorar cada uma das palavras do meu filho, ao invés de permitir que eu recuperasse alguma serenidade, apenas serviu para agravar a ansiedade de que procurava libertar­‑me. Quase saltei do sofá em direcção à janela mais próxima, movido por uma intensa e inesperada sufocação, para abri­‑la de par em par e engolir o ar quente do exterior nocturno. O meu olhar derivou da rua estreita e pouco iluminada, por debaixo daquela janela, até aos clarões eléctricos da avenida perpendicular, onde se situava a entrada do prédio, para regressar ao ponto de partida e se deter sobre o toldo de um pequeno restaurante a que eu e a Paola costumávamos recorrer com alguma regularidade à hora de jantar, mas não conseguiu que o nome do meu filho Álvaro, em caracteres demasiado negros sobre uma superfície branca, como uma cortina hesitante entre a transparência e a opacidade, desistisse de me ocupar o pensamento. O ruído dos carros na avenida misturava­‑se à voz neutra do meu filho, tal como eu o imaginava a dizer­‑me as palavras que preferira escrever, tal como eu o imaginava a contar que a Maria caíra desamparada nas escadas do prédio e, ainda que tivesse sido logo socorrida por ele, que a levara de imediato ao serviço de urgência de um hospital central, perdera a criança que deveria nascer dali a três meses. A concluir a carta, o meu filho assegurava­‑me que a mulher estava bem, mas não deveria ser inquietada com telefonemas sobre o seu estado de saúde, para que a memória pudesse limpar­‑se, como ele dizia, numa expressão que me causou alguma repugnância, sem que eu compreendesse imediatamente porquê.»

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