Sunday, August 29, 2010

é preciso beber água gelada

Perdoa, não sabia que cantavas
em sossego, silenciosamente. Neste calor
é preciso beber água gelada; também convém
não adorar ídolos, por exemplo a imagem
que aí trazes de ti e te atormenta
(ou me atormenta a mim?).
Outros exemplos incluem jardins de babilónia,
erupções do etna, o efeito
afrodisíaco do diamante,
as ciências da educação.
Vou-me sentar aqui, respirar até doer
as coisas possíveis nunca reais,
aprender, nó a nó, como te soltas;
vamos cair num poço, sem
bússola e pára-quedas, vamos ser o primeiro
amor a dois no mundo.

António Franco Alexandre

Monday, August 23, 2010

Há quem receite a palavra ao ponto de osso, de oco;

ao ponto de ninguém e de nuvem.

sou mais a palavra com febre decaída, fodida, na

sarjeta.

Sou mais a palavra ao ponto de entulho.

Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las

pro chão corrompê-las,

até que padeçam de mim e me sujem de branco.

Sonho exercer com elas o ofício de criado:

usá-las como quem usa brincos.


Manoel de Barros

Sunday, August 15, 2010

meu querido mês de agosto

Sobre esta praia me inclino.
Praias sei;
Me deitei nelas, fitei nelas, amei nelas
com os olhos pelo menos os deitados corpos
nus côncavos da areia ou dentre as pedras
desnudos em mostrar-se ou consentir-se
ou em tombar-me intentos como o fogo
do sol em dardos que se chocam brilham
em lâminas faíscas de aço róseo e duro.
Do Atlântico ondas rebentavam plácidas
e o delas ruído às vezes tempestade
que em negras sombras recurvava as águas
me ouviram não dizer nem conversar
mais do que os gestos de tocar e ter
na tépida memória as flutuantes curvas
de ancas e torsos, negridão de pêlos,
olhos semicerrados, boca entreaberta,
pernas e braços se alongando em dedos.
Aqui é um outro oceano.
Um outro tempo.
Miro dois vultos na silente praia
pousada rente à escarpa recortada abrupta
que só trechos de areia lhes consente:
dois corpos lado a lado corno espadas frias.
Ainda que desça a perpassar recantos
onde se acolherão mais corpos nus,
é um outro oceano, um outro tempo em outro
diverso em gente organizado mundo.
Ambíguos corpos, sexos vacilantes,
um cheiro de cadáver, que ao amor não feito
concentra de tristeza e de um anseio
de matar ou ser morto sem prazer nem mágoa.
Aqui mesmo de olhar-se um qual pavor gelado
pinta de palidez o rosto que sorria,
o corpo que se adiante ao gesto desenhado.
E nem mesmo de outrora e de outros mares
se atrevem a deitar-se imagens soltas
que uma vez alegria acaso tenham sido.
Se aqui nasceram deuses, nada resta deles
senão a luz mortal de corpos como máquinas
de um sexo que se odeia no prazer que tenha
e mais é de ódio ao ver-se desejado.

Jorge de Sena