Um real que seja fabuloso
Pedro Mexia
Ípsilon, 3 de Julho de 2009
Notável estreia póstuma de um poeta com uma estética, um pensamento e uma poética
Que uma primeira colectânea de poemas se chame "últimos poemas" parece uma ironia. Aqui, é uma ironia trágica. Nuno Rocha Morais, que foi jornalista e tradutor, morreu o ano passado, aos 34 anos, deixando um punhado de poemas publicados em revistas e bastantes inéditos, entre os quais os aqui coligidos.
É quase inevitável pensarmos em Daniel Faria, que morreu aos 28 e também deixou uma obra vasta e de alta qualidade. É aliás possível que a recepção destes "Últimos Poemas" seja de algum modo perturbada, digamos assim, pelo facto de serem últimos, pela sua condição de surpresa e despedida. Isso não impede que se diga, com alguma certeza, que "Últimos Poemas" é um dos mais belos livros da poesia portuguesa recente.
Dois elementos chamam imediatamente a atenção. Um é o "culturalismo", que aqui se desdobra em alusões, citações ou homenagens a Elizabeth Bishop, Zbigniew Herbert, Kavafis, Ponge, Apollinaire, ou a esse olímpico Goethe que achava escritores como Kleist simples "fedelhos". O culturalismo não é de todo novidade na poesia portuguesa, mas estes diálogos culturais não são solenes e entediantes, nem casuais e aleatórios; há uma lógica e uma unidade em cada poeta invocado, uma variedade nos versos e no tom dos versos que indicia uma aprendizagem poética longamente cultivada.
O segundo elemento manifesta-se no início dos versos assinalado com maiúscula, o que pode supor um certo classicismo. É um engano. Esta poesia nunca tenta efeitos de modernidade espúria e fácil, mas também não é exactamente clássica. É mais justo dizer que ela cultiva um certo acabamento, um não-espontaneísmo, aquilo a que Joana Matos Frias, no prefácio, chama uma impessoalidade que não é um fingimento. Há um Ulisses que regressa a casa e não é reconhecido por ninguém, há um Cristo que procura o "amor que o poupasse ao sacrifício", há guelfos e gibelinos, há uma recorrência de palavras raras (prófugo, mavórcio), mas tudo isso aparece tão naturalmente como a realidade mais imediata e comezinha.
A mais frequente dessas aparições tem a ver com a experiência de viver no estrangeiro (Nuno Rocha Morais trabalhava para a Comissão Europeia). Em terreno desconhecido, ou só conhecido pelas rotinas diárias, o poeta observa personagens, a sua estranheza ou banalidade, o seu mistério de "seres lacunares". Muitas vezes, a paisagem é de desolação: "Os esqueletos de metal dos guindastes, / Como mastodontes num museu de história natural; / É preciso ver cruzar, na distância, / As luzes penadas, desencarnadas, de um comboio, / Ver as chispas torturadas que as suas rodas / Arrancam aos carris; / É preciso sentir a respiração ofegante, / Moribunda, das árvores sob a primeira neve, / Farejando o fim em curso, que as retomará, / Mudado já em princípio iminente" (pág. 99). Mas o exílio e a desolação são atenuados por episódios eróticos, vividos ou imaginados, sempre algo felizes e algo melancólicos. É o caso do poema sobre as raparigas estónias: "Aprendem a exprimir sentimentos em francês / Servidos por um escanção, / Mas gostam de dizer que não têm alma, / Nunca tiveram - proibida durante décadas, / Acabou por definhar, desistir / Destes corpos altos, esguios, / Produto de qualquer pacto com o diabo. / Embora tão bálticas, não são por isso menos gregas; / Cépticas, custa-lhes a crer que o sol italiano / Seja tão incondicional na sua graça, / Que o céu possa ser tão sem censura" (pág. 39).
O exílio é uma figuração de um tema central destes poemas, que avançam sem cronologia, com núcleos temáticos tendenciais. Esse tema é a separação. A separação do casal, desde logo, a mão que de repente já não está no ombro: "Foi assim que partiste, a meio do meu nome, / Com o meu nome partido ao meio, / De que só me ficou o oco / E é de dentro dele que uma voz escura se derrama, / Incrédula e com medo, incrédula e com medo. / À volta, tudo continua, a grande montra do mundo, / O comércio de vivos e mortos, / A respirar dióxidos e monóxidos / Da ilusão de que a vida continua" (págs. 88-89). Mas também a separação radical da morte, fortíssima nos poemas familiares que evocam uma infância paradisíaca soterrada pela morte de uma avó. É isso que nos leva às incontáveis referências fúnebres, "o baque com o que terra nos recebe", versos que lidos agora parecem de mau agoiro.
Perante a morte, é preciso evitar uma tentação: a "tentação de corrigir a vida". Somos o que somos, e depois desaparecemos. Mas ainda assim levamos daqui uma espécie de ética triste: " (...) tentar o bem nosso / Pelo bem dos outros / Já não é sequer o mal menor, / Cansados de mais, brutos de mais, / Nós mesmos de mais, / Sempre morais numa impossível / E exaltada falta de paciência, / Numa pressurosa falta de ternura, / Nós sempre tão corredios, / Sárdonicos até nos estertores" (pág. 24). Há em Nuno Rocha Morais uma estética, um pensamento e uma poética. Quando ele escreve que a "única fantasia" é "Supor a existência de um real / Que não seja fabuloso" diz-nos quase tudo, mas deixa uma ambiguidade essencial: "fantasia", em linguagem poética, é o oposto de "fantasia" em linguagem comum.
Que uma primeira colectânea de poemas se chame "últimos poemas" parece uma ironia. Aqui, é uma ironia trágica. Nuno Rocha Morais, que foi jornalista e tradutor, morreu o ano passado, aos 34 anos, deixando um punhado de poemas publicados em revistas e bastantes inéditos, entre os quais os aqui coligidos.
É quase inevitável pensarmos em Daniel Faria, que morreu aos 28 e também deixou uma obra vasta e de alta qualidade. É aliás possível que a recepção destes "Últimos Poemas" seja de algum modo perturbada, digamos assim, pelo facto de serem últimos, pela sua condição de surpresa e despedida. Isso não impede que se diga, com alguma certeza, que "Últimos Poemas" é um dos mais belos livros da poesia portuguesa recente.
Dois elementos chamam imediatamente a atenção. Um é o "culturalismo", que aqui se desdobra em alusões, citações ou homenagens a Elizabeth Bishop, Zbigniew Herbert, Kavafis, Ponge, Apollinaire, ou a esse olímpico Goethe que achava escritores como Kleist simples "fedelhos". O culturalismo não é de todo novidade na poesia portuguesa, mas estes diálogos culturais não são solenes e entediantes, nem casuais e aleatórios; há uma lógica e uma unidade em cada poeta invocado, uma variedade nos versos e no tom dos versos que indicia uma aprendizagem poética longamente cultivada.
O segundo elemento manifesta-se no início dos versos assinalado com maiúscula, o que pode supor um certo classicismo. É um engano. Esta poesia nunca tenta efeitos de modernidade espúria e fácil, mas também não é exactamente clássica. É mais justo dizer que ela cultiva um certo acabamento, um não-espontaneísmo, aquilo a que Joana Matos Frias, no prefácio, chama uma impessoalidade que não é um fingimento. Há um Ulisses que regressa a casa e não é reconhecido por ninguém, há um Cristo que procura o "amor que o poupasse ao sacrifício", há guelfos e gibelinos, há uma recorrência de palavras raras (prófugo, mavórcio), mas tudo isso aparece tão naturalmente como a realidade mais imediata e comezinha.
A mais frequente dessas aparições tem a ver com a experiência de viver no estrangeiro (Nuno Rocha Morais trabalhava para a Comissão Europeia). Em terreno desconhecido, ou só conhecido pelas rotinas diárias, o poeta observa personagens, a sua estranheza ou banalidade, o seu mistério de "seres lacunares". Muitas vezes, a paisagem é de desolação: "Os esqueletos de metal dos guindastes, / Como mastodontes num museu de história natural; / É preciso ver cruzar, na distância, / As luzes penadas, desencarnadas, de um comboio, / Ver as chispas torturadas que as suas rodas / Arrancam aos carris; / É preciso sentir a respiração ofegante, / Moribunda, das árvores sob a primeira neve, / Farejando o fim em curso, que as retomará, / Mudado já em princípio iminente" (pág. 99). Mas o exílio e a desolação são atenuados por episódios eróticos, vividos ou imaginados, sempre algo felizes e algo melancólicos. É o caso do poema sobre as raparigas estónias: "Aprendem a exprimir sentimentos em francês / Servidos por um escanção, / Mas gostam de dizer que não têm alma, / Nunca tiveram - proibida durante décadas, / Acabou por definhar, desistir / Destes corpos altos, esguios, / Produto de qualquer pacto com o diabo. / Embora tão bálticas, não são por isso menos gregas; / Cépticas, custa-lhes a crer que o sol italiano / Seja tão incondicional na sua graça, / Que o céu possa ser tão sem censura" (pág. 39).
O exílio é uma figuração de um tema central destes poemas, que avançam sem cronologia, com núcleos temáticos tendenciais. Esse tema é a separação. A separação do casal, desde logo, a mão que de repente já não está no ombro: "Foi assim que partiste, a meio do meu nome, / Com o meu nome partido ao meio, / De que só me ficou o oco / E é de dentro dele que uma voz escura se derrama, / Incrédula e com medo, incrédula e com medo. / À volta, tudo continua, a grande montra do mundo, / O comércio de vivos e mortos, / A respirar dióxidos e monóxidos / Da ilusão de que a vida continua" (págs. 88-89). Mas também a separação radical da morte, fortíssima nos poemas familiares que evocam uma infância paradisíaca soterrada pela morte de uma avó. É isso que nos leva às incontáveis referências fúnebres, "o baque com o que terra nos recebe", versos que lidos agora parecem de mau agoiro.
Perante a morte, é preciso evitar uma tentação: a "tentação de corrigir a vida". Somos o que somos, e depois desaparecemos. Mas ainda assim levamos daqui uma espécie de ética triste: " (...) tentar o bem nosso / Pelo bem dos outros / Já não é sequer o mal menor, / Cansados de mais, brutos de mais, / Nós mesmos de mais, / Sempre morais numa impossível / E exaltada falta de paciência, / Numa pressurosa falta de ternura, / Nós sempre tão corredios, / Sárdonicos até nos estertores" (pág. 24). Há em Nuno Rocha Morais uma estética, um pensamento e uma poética. Quando ele escreve que a "única fantasia" é "Supor a existência de um real / Que não seja fabuloso" diz-nos quase tudo, mas deixa uma ambiguidade essencial: "fantasia", em linguagem poética, é o oposto de "fantasia" em linguagem comum.
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