Thursday, July 16, 2009

ÚLTIMOS POEMAS, DE NUNO MORAIS

A arte da tristeza e da atenção

António Guerreiro
Expresso, 9 de Julho de 2009

Um livro de poesia trabalhado e amadurecido como uma 'obra' singular e acabada.

Este é um livro póstumo. Por uma nota biográfica incluída na badana e também pelo prefácio de Joana Matos Frias, ficamos a saber que Nuno Rocha Morais nasceu no Porto em 1973, foi jornalista do "Comércio do Porto", depois de ter terminado o curso de Línguas e Literaturas Modernas, e de 1999 até à data da sua morte - 8 de Junho de 2008 - foi tradutor da Comissão Europeia, no Luxemburgo. Esse prefácio crítico e introdutório dá-nos também a informação de que o autor deixou o livro organizado e de que o título - "Últimos Poemas" - é aquele com que, desde os 20 anos, tinha decidido inaugurar o seu percurso de poeta. Mas essa inauguração em livro foi diferida, e até agora só alguns poemas tinham sido publicados em revistas.

Os cerca de cem poemas que constituem este livro valem como uma 'obra', sem nada de avulso, sem concessões generosas ou piedosas que as circunstâncias poderiam propiciar - uma 'obra' que irrompe com força na cena da poesia portuguesa actual e com a qual temos de contar.

A característica principal desta poesia consiste em manter vivo, em vários planos, um estado de tensão que lhe dita a complexidade e a torna refractária a classificações disponíveis. Antes de mais, a tensão formal entre a regra classicizante do equilíbrio e da harmonia e o imperativo moderno da liberdade e do desregramento. Veja-se, por exemplo, como este poema (pág. 127) entra nas regiões do sinistro e do irrepresentável sem abandonar, no entanto, a solidez formal, o rigor expressivo e o modo sóbrio: "Pequeno, quase caseiro, o campo./ Em torno, maciços, os Vosges./ Os meus passos afundam-se/ Na terra húmida e mole./ Vindas de todo o lado/ No vento que o arame esgarça,/ Uivam as alcateias do terror./ E por todo o lado irrompe o vento,/ Osso furando a pele/ Deste espaço quieto e gelado,/ Desta memória com olhos/ Maiores do que o rosto."

Tensão importante é também aquela que deriva da relação que os poemas estabelecem com as suas mediações literárias. Esta é uma poesia culta, e o diálogo com outros poetas é muitas vezes explicitado. Porém, essas referências são incorporadas como matéria que o texto elabora sem o hiato da mediação. Excepção a esta regra é um texto em prosa intitulado "Um Método", designado como um "exercício pongiano" (pág. 71). Mas mesmo aqui temos uma declinação completamente idiomática da escrita de Francis Ponge. Nuno Rocha Morais não chega ao ponto de reescrever, para uso próprio e à maneira de uma arte poética explícita, o "My Creative Method" pongiano (a Ponge, ele vai buscar uma qualidade: a exactidão), mas a questão do método não lhe é de modo nenhum indiferente. Podemos, aliás, dizer que essa questão é responsável por uma outra tensão: aquela entre as emoções e a contemplação intelectual, entre a relação com o mundo e os outros, que é da ordem das afecções e que é determinada por uma atitude analítica.

Estes são os dois pólos que dinamizam a poesia deste autor e que fazem com que a sua poesia se erga num intervalo entre a ponderação reflexiva e as forças emotivas obscuras: "Vou por vielas sombrias,/ Só pensamento e passos,/ Com os olhos afundados em espiral./ Que operações do espírito/ Se entregam a estes passos?/ Vou pelas espirais sombrias/ Daqueles que não têm amor,/ Vielas sombrias como perguntas sem resposta,/ Entranhando-se numa cidade animal,/ De desejos mal iluminados" (pág. 53). E eis-nos chegados a outro ponto, também ele um campo de tensões: entre a harmonia austera de uma poesia que nomeia a presença com uma exactidão própria da fórmula e a atitude discretamente elegíaca que nasce de um lamento, de uma perda, de uma impossibilidade de proferir os nomes divinos capazes de dominar o mundo.

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