Sunday, May 23, 2010

e assim se faz o silêncio

(omarpareceazeite.blogspot.com)
PAULO EDUARDO CARVALHO (1965-2010)


A perda de Paulo Eduardo Carvalho para a cultura portuguesa e para a cultura do mundo é irreparável. E digo mundo, porque ele era conhecido além-fronteiras pelo saber que detinha sobre as artes do espectáculo, um saber que sempre partilhou com os outros. Alguns de vós hão-de ter visto peças traduzidas por ele, ou encenadas por ele, de Samuel Beckett, de Harold Pinter, de Brian Friel, de Caryl Churchill, de Frank McGuinness, de Martin Crimp… Paulo Eduardo era um professor imensamente dedicado, um tradutor originalíssimo, um investigador de mérito incomparável. Não chegam os adjectivos para descrever este homem do teatro que, tal como o teatro, era composto de mil valências e mil faces boas.

Como Goya, descrito por Jorge de Sena, o Paulo tinha “um coração cheio de fúria e de amor”. Por isso às suas qualidades científicas se somava todo um mundo de partilha de afectos. O seu desaparecimento é de uma violência inaudita. Era a pessoa mais extraordinária que eu conheci e eu tive o privilégio de o ter como o meu amigo mais querido. Preciso de o lembrar aqui.

Ana Luísa Amaral
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PARA O PAULO

Era um dia de Verão, como o de hoje, e nós ali, sentados na minha varanda, falando de um dicionário que a Ana Gabriela e eu então preparávamos. Em cima da mesa, um cinzeiro muito raso. “Precisas de cinzeiros”, reparou o Paulo. E ia sugerindo entradas. Que tínhamos que incluir aquele termo, e que não nos devíamos esquecer daquele outro, ia dizendo. O calor desse dia era bom e, a certa altura, o Paulo acrescentou: “E ‘silêncio’, Ana? Num dicionário feminista, convinha que vocês tivessem uma entrada para ‘silêncio’”. “Tu achas?” – e fiquei a pensar. Depois, perguntei-lhe: “Olha, não queres fazer ‘o silêncio’ comigo?”. Olhámos um para o outro, e o Paulo, a rir, disse-me: “Ó Aninhas, isso dava poema”. Nunca houve no dicionário entrada para ‘silêncio’, mas houve, alguns dias depois, dois cinzeiros, um branco e outro castanho, grandes e protectores, que ele me deu e que nos serviram bem durante muito tempo. Houve ainda, como ele previu, poema, que eu lhe dediquei num livro, mas que, nas muitas leituras de poesia que fizemos juntos, nunca lemos em voz alta. A entrada para silêncio é esta nossa aqui, a da vida.


ALITERANDO SILÊNCIOS: COMPOSIÇÕES
Para o Paulo Eduardo

Não queres fazer o silêncio
comigo?
Sobressalta-se um pouco uma varanda
e acrescenta-se: vento

Por sobressalto: um vaso mal de frente
a estas flores,
ou um cinzeiro de pequeno porte,
ausente de cavalo,
e algum
desequilíbrio nessa mesa

Fazemos o silêncio,
se quiseres,
e assim mantemos tão aliteradas
as primeiras palavras

Está bem assim o vento,
não lhe mexas,
fica-lhe bem a asa sibilante
e ajuda à cinza que se alastra agora,
que transborda de lado na varanda
e desfaz a aridez dessa
roseira

Traz-me um pouco de paz
e ajuda-me a compor
esta paisagem

Vem fazer um silêncio,
porque o resto:
azul de som
– como em sereno
palco

Ana Luísa Amaral

3 comments:

Lusios said...

"sou comarca onde parou de chover
e quem não se lembra da sanguechuva
que foi em tempos este coração

já não tenho a vida toda (faço trinta
o mês que vem) e a verdade é que nem
na morte se pôde alguma vez confiar

muito mal contado, isso da morte"


Miguel-Manso, Santo Subito, Lisboa, 2010, p. 104.


Está tudo mesmo bem? Um forte abraço!

Joana Blu said...

F., é realmente das coisas mais mal contadas, isto da morte... Devia ser possível atirar-se pedras contra as perdas. Temos de cafezar um dia destes, num dia muito normal muito quotidiano como gostava o Belo :). Antes disso vou ler as tuas premissas sobre a crítica. Um abraço

Lusios said...

Fica combinado!Se depois quiseres entrar no "jogo" das premissas (que não são minhas),todos ficaremos certamente muitíssimo mais afortunados!Um forte abraço