A COR DOS OSSOS
É muito pouco, geralmente, o que sabemos quer dos nossos órgãos, quer do nosso sangue.
[...]
Se me fosse possível ver na rua um osso ou um órgão meu, dificilmente o distinguiria dos de outras pessoas junto das quais ele estivesse, do mesmo modo que não conheceria o meu antepassado de quem nunca me chegou às mãos qualquer retrato.
A nossa anatomia é uma terra enigmática e longínqua sobre cujo mapa jamais pensámos debruçar-nos. Carregamos connosco, desde que nascemos, montes e caudalosos rios de cujo crescimento temos uma ideia exterior, ligada sobretudo ao peso que do conjunto periodicamente acusa o mostrador duma balança anónima. Das fontes que dentro de nós durante muitos anos brotam e depois de apagam lentamente, não temos a mínima noção, nem do que dentro de nós se passa em processos aparentemente tão simples e correntes como as digestões diárias.
Os ossos são, no entanto, o que, de tudo isso, mais me preocupa. Desconhecemos deles a própria cor. Talvez haja quem os tenha coloridos, uns deles azuis, os outros cor-de-rosa, e atravesse a vida, às vezes longa, sem que do facto se chegue a aperceber. Há talvez mesmo quem não dê, durante a vida inteira, por ter ossos, carregando-os consigo várias dezenas de anos como se eles não existissem. O problema que daqui decorre é o de saber se o facto de a cor deles divergir altera a relação que, mesmo que o ignore, com eles tem quem os possui; ou seja, o de saber se alguém, por tê-los verdes, ou verdes alguns deles e outros azuis, se sente, por exemplo, mais feliz - ainda que, repito, essa questão se lhe não ponha - do que quem os tem castanhos, ou pura e simplesmente duma cor que como tal se não chegue a definir, como se só em dadas circunstâncias se justificasse que a questão da cor fosse encarada.
Um outro passo a dar nos meandros deste raciocínio é o que nos leva a pôr a hipótese de os ossos se poderem refugiar, em certos casos, na memória, como se esta os absorvesse e quem por eles fosse constituído então se invertebrasse ou reduzisse a um mero filamento onde assentasse a carapaça da memória, no interior da qual o corpo inteiro se engolfasse até completamente se sumir.
Chave de leitura no último verso do poema «Manuel»:
Entre a pele e o coração alçam-se as pontes.
Luís Miguel Nava, Onde à Nudez
R.I.P.
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