Mársias e a cintigrafia
Mársias cintila. É belo assim recortado,
Mudado por Apolo numa paisagem radioactiva.
O deus, com grandes incêndios, deu início
A uma caça à alma, ainda e sempre a monte.
Apolo é paciente, sabe que nada
Sobreviverá à devastação química
Com que fará pagar o desafio de Mársias –
Ter apregoado a impiedade do sol,
Ter-se jactado — O sol é meu inimigo –
Para se arrancar à sua insignificância.
Apolo não o esfolará vivo:
Reserva-lhe pior – uma sorte de laboratório.
Apolo admira os músculos tangidos,
A precisão dos órgãos,
O brilho viscoso das vísceras,
A coralina arborescência
De vasos, veias, fibras,
O impulso arquitectónico de um grito,
A polpa pulsante do vivo em agonia –
Apolo ama esta luz que tudo arranca.
Sobretudo, é preciso que Mársias
Suplique ainda alguma clemência divina,
Para que a sua carne se torne mais funda,
O seu sangue, mais rico,
Para que a dor se expanda
Seguindo essa esperança condutora
Que o deus, com um sopro, fará vã.
Nuno Morais, Últimos Poemas
Quasi, 2009
Quasi, 2009
No comments:
Post a Comment