Wednesday, December 22, 2010

Saudade, Murilo, Saudade

Maria da Saudade Cortesão Mendes, in memoriam

CARTA DE NATAL A MURILO MENDES

Querido Murilo: será mesmo possível
Que você este ano não chegue no Verão
Que seu telefonema não soe na manhã de Julho
Que não venha partilhar o vinho e o pão

Como eu só o via nessa quadra do ano
Não vejo a sua ausência dia-a-dia
Mas em tempo mais fundo que o quotidiano

Descubro a sua ausência devagar
Sem mesmo a ter ainda compreendido
Seria bom Murilo conversar
Neste dia confuso e dividido

Hoje escrevo porém para a Saudade
- Nome que diz permanência do perdido
Para ligar o eterno ao tempo ido
E em Murilo pensar com claridade -

E o poema vai em vez deste postal
Em que eu nesta quadra respondia
- Escrito mesmo na margem do jornal
Na baixa - entre as compras de Natal

Para ligar o eterno a este dia.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Lisboa, 22 de Dezembro de 1975

Wednesday, December 15, 2010

Degullar

A vida muda como a cor dos frutos
lentamente
e para sempre
A vida muda como a flor em fruto
velozmente
A vida muda como a água em folhas
o sonho em luz elétrica
a rosa desembrulha do carbono
o pássaro, da boca
mas
quando for tempo
E é tempo todo tempo
mas
não basta um século para fazer a pétala
que um só minuto faz
ou não
mas
a vida muda
a vida muda o morto em multidão

Ferreira Gullar, Dentro da Noite Veloz

Monday, December 13, 2010

Friday, December 10, 2010

Mozart

Requiem de Mozart

Ouço-te, ó música, subir aguda
à convergente solidão gelada.
Ouço-te, ó música, chegar desnuda
ao vácuo centro, aonde, sustentada
e da esférica treva rodeada,
tu resplandeces e cintilas muda
como o silente gesto, a mão espalmada
por sobre a solidão que amante exsuda
e lacrimosa escorre pelo espaço
além de que só luz grita o pavor.
Ouço-te lá pousada, equidistante
desse clarão cuja doçura é de aço
como do frágil mas potente amor
que em teu ouvir-te queda esvoaçante.

Ó música da morte, ó vozes tantas
e tão agudas, que o estertor se cala.
Ó música da carne amargurada
de tanto ter perdido que ora esquece.
Ó música da morte, ah quantas, quantas
mortes gritaram no que em ti não fala.
Ó música da mente espedaçada
de tanto ter sonhado o que entretece,
sem cor e sem sentido, no fervor
de sublimar-se nesse além que és tu.
Ó vida feita uma detida morte.
Ó morte feita um inocente amor.
Amor que as asas sobre o corpo nu
fecha tranquilas no possuir da sorte.

Jorge de Sena

Thursday, December 9, 2010

09.12.1977

Monday, November 22, 2010

POEMAS COM CINEMA


Ó Cinema, ó maravilha

em que eu me possuiria,

mas que apenas possuo

da sombra,

na minha solidão da multidão quieta,

entre as carícias do silêncio ao pensamento,

sem esforço levado

a sofrer, a sentir

o que de eterno há num momento!


Edmundo de Bettencourt

Sunday, October 24, 2010

Nova epístola para os poetas oitocentistas


Está ali, de costas para Caspar David, no alto
de um promontório negro, o que significa que ele
prolonga ainda mais além o olhar do pintor
e sobretudo a respiração, que inspira e expira o Mar.

Fiama, ainda

Lições de Anatomia Estética: Encore II

Estes pinheiros dialogam

com a boca do horizonte.
Riem como quem rasga
o abdómen dos ventos.

FHPB

Saturday, October 23, 2010

hedda, c'est moi


Teatro Nacional São João | Salão Nobre

[23 Outubro 2010]

sábado 17:00

“Estás a olhar para onde?”:

paisagens ibsenianas nos palcos contemporâneos

conversa com Jorge Silva Melo, Maria João Luís, Nuno Cardoso,

Patrick Sourd

moderação Alexandra Moreira da Silva

one of many good things

Friday, October 22, 2010

Lições de Anatomia Estética: Encore

PorNegrito olhos que mastigam. Pelos dedos

onde descansa a minha medula encostada.

Fiama

Depois, a Poesia tornou-se tão presente

que aceitei que me debicasse nas pálpebras.

Fiama, Fiama

Fiama em chamas

Serei eu a vítima

das chamas se as devorar
com os meus dentes presos às imagens
dos olhos que imaginam.

Fiama Hasse Pais Brandão
Área Branca

Tuesday, October 5, 2010



Apprends à penser avec douleur.


Maurice Blanchot
L’Écriture du Désastre
1980

Monday, October 4, 2010

o cisne

para a Fiama,
que não gosta de cisnes e escreveu «Cisne»

(O cisne persegue a Fiama no quintal
a Fiama persegue o cisne no poema
sarada a mão direita da poetisa
a poetisa pode escrever sobre o cisne
(de ódio de cisne e de ócio de Fiama
se faz a literatura portuguesa
minha contemporânea)
depois a Fiama persegue o cisne no quintal
durante um quarto de hora
e o cisne persegue a Fiama no poema
pela vida fora)

Adília Lopes

Thursday, September 16, 2010

hoje...


Museu Soares dos Reis

Também eu vi no ângulo obscuro
De um salão a harpa coberta de pó,
Entre móveis e faianças,
Um pó de música inerte,
À espera de sedas roçagantes,
Da graça e do riso das debutantes,
Do deslizar espectral de contradanças,
Um debate sobre Céfalo e Prócris
Ou a audácia da mão mareando
Esfaimada sobre as nádegas
De uma ninfa na Ilha dos Amores –
Que os corpos de todas as debutantes
Neste mesmo salão prometeram ser.

Nuno Morais, Últimos Poemas




Wednesday, September 8, 2010

microscópio

Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre:

“O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem.”

Carlos de Oliveira

Wednesday, September 1, 2010

september, 1

I sit in one of the dives

On Fifty-second Street

Uncertain and afraid

As the clever hopes expire

Of a low dishonest decade:

Waves of anger and fear

Circulate over the bright

And darkened lands of the earth,

Obsessing our private lives;

The unmentionable odour of death

Offends the September night.


Accurate scholarship can

Unearth the whole offence

From Luther until now

That has driven a culture mad,

Find what occurred at Linz,

What huge imago made

A psychopathic god:

I and the public know

What all schoolchildren learn,

Those to whom evil is done

Do evil in return.


Exiled Thucydides knew

All that a speech can say

About Democracy,

And what dictators do,

The elderly rubbish they talk

To an apathetic grave;

Analysed all in his book,

The enlightenment driven away,

The habit-forming pain,

Mismanagement and grief:

We must suffer them all again.


Into this neutral air

Where blind skyscrapers use

Their full height to proclaim

The strength of Collective Man,

Each language pours its vain

Competitive excuse:

But who can live for long

In an euphoric dream;

Out of the mirror they stare,

Imperialism's face

And the international wrong.


Faces along the bar

Cling to their average day:

The lights must never go out,

The music must always play,

All the conventions conspire

To make this fort assume

The furniture of home;

Lest we should see where we are,

Lost in a haunted wood,

Children afraid of the night

Who have never been happy or good.


The windiest militant trash

Important Persons shout

Is not so crude as our wish:

What mad Nijinsky wrote

About Diaghilev

Is true of the normal heart;

For the error bred in the bone

Of each woman and each man

Craves what it cannot have,

Not universal love

But to be loved alone.


From the conservative dark

Into the ethical life

The dense commuters come,

Repeating their morning vow;

'I will be true to the wife,

I'll concentrate more on my work,'

And helpless governors wake

To resume their compulsory game:

Who can release them now,

Who can reach the dead,

Who can speak for the dumb?


All I have is a voice

To undo the folded lie,

The romantic lie in the brain

Of the sensual man-in-the-street

And the lie of Authority

Whose buildings grope the sky:

There is no such thing as the State

And no one exists alone;

Hunger allows no choice

To the citizen or the police;

We must love one another or die.


Defenseless under the night

Our world in stupor lies;

Yet, dotted everywhere,

Ironic points of light

Flash out wherever the Just

Exchange their messages:

May I, composed like them

Of Eros and of dust,

Beleaguered by the same

Negation and despair,

Show an affirming flame.


W. H. Auden


Sunday, August 29, 2010

é preciso beber água gelada

Perdoa, não sabia que cantavas
em sossego, silenciosamente. Neste calor
é preciso beber água gelada; também convém
não adorar ídolos, por exemplo a imagem
que aí trazes de ti e te atormenta
(ou me atormenta a mim?).
Outros exemplos incluem jardins de babilónia,
erupções do etna, o efeito
afrodisíaco do diamante,
as ciências da educação.
Vou-me sentar aqui, respirar até doer
as coisas possíveis nunca reais,
aprender, nó a nó, como te soltas;
vamos cair num poço, sem
bússola e pára-quedas, vamos ser o primeiro
amor a dois no mundo.

António Franco Alexandre

Monday, August 23, 2010

Há quem receite a palavra ao ponto de osso, de oco;

ao ponto de ninguém e de nuvem.

sou mais a palavra com febre decaída, fodida, na

sarjeta.

Sou mais a palavra ao ponto de entulho.

Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las

pro chão corrompê-las,

até que padeçam de mim e me sujem de branco.

Sonho exercer com elas o ofício de criado:

usá-las como quem usa brincos.


Manoel de Barros

Sunday, August 15, 2010

meu querido mês de agosto

Sobre esta praia me inclino.
Praias sei;
Me deitei nelas, fitei nelas, amei nelas
com os olhos pelo menos os deitados corpos
nus côncavos da areia ou dentre as pedras
desnudos em mostrar-se ou consentir-se
ou em tombar-me intentos como o fogo
do sol em dardos que se chocam brilham
em lâminas faíscas de aço róseo e duro.
Do Atlântico ondas rebentavam plácidas
e o delas ruído às vezes tempestade
que em negras sombras recurvava as águas
me ouviram não dizer nem conversar
mais do que os gestos de tocar e ter
na tépida memória as flutuantes curvas
de ancas e torsos, negridão de pêlos,
olhos semicerrados, boca entreaberta,
pernas e braços se alongando em dedos.
Aqui é um outro oceano.
Um outro tempo.
Miro dois vultos na silente praia
pousada rente à escarpa recortada abrupta
que só trechos de areia lhes consente:
dois corpos lado a lado corno espadas frias.
Ainda que desça a perpassar recantos
onde se acolherão mais corpos nus,
é um outro oceano, um outro tempo em outro
diverso em gente organizado mundo.
Ambíguos corpos, sexos vacilantes,
um cheiro de cadáver, que ao amor não feito
concentra de tristeza e de um anseio
de matar ou ser morto sem prazer nem mágoa.
Aqui mesmo de olhar-se um qual pavor gelado
pinta de palidez o rosto que sorria,
o corpo que se adiante ao gesto desenhado.
E nem mesmo de outrora e de outros mares
se atrevem a deitar-se imagens soltas
que uma vez alegria acaso tenham sido.
Se aqui nasceram deuses, nada resta deles
senão a luz mortal de corpos como máquinas
de um sexo que se odeia no prazer que tenha
e mais é de ódio ao ver-se desejado.

Jorge de Sena

Wednesday, July 21, 2010

dentro da fuga

Não foi outro o nosso amor
fugia tornava a voltar e trazia-nos
uma pálpebra descida muito longínqua
um sorriso marmóreo, perdido
dentro da erva matutina
uma concha bizarra explicá-la
procurava insistentemente nossa alma.

O nosso amor foi outro tenteava
quietamente entre coisas em redor de nós
para explicar porque não queremos morrer
com tanta paixão.

E se nos agarrámos a quadris e se abraçamos
outras nucas com toda a nossa força
e se unimos o nosso hálito com o hálito
dessa pessoa
e se fechámos os nossos olhos, não foi outro
apenas este anseio mais profundo de nos agarrarmos
dentro da fuga.

Yorgos Seferis
trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis

A Sort of a Song

Let the snake wait under
his weed
and the writing
be of words, slow and quick, sharp
to strike, quiet to wait,
sleepless.
- through metaphor to reconcile
the people and the stones.
Compose. (No ideas
but in things) Invent!
Saxifrage is my flower that splits
the rocks.

William Carlos Williams

Tuesday, July 6, 2010

o poema é inútil como uma criança

que as águas afagam

A. Franco Alexandre

Wednesday, June 16, 2010

contra a manhã burra

ÚLTIMO CIGARRO

o vinho é branco a tarde cai o dia avança no vento
na boca acorda o último cigarro o poema segue o risco
a claríssima insuficiência

é este o incêndio da tarde o fim do almoço
a violência dos pássaros as crianças dormem a sesta
reclusas na sombra azul dos quartos

mãos sem sentido
arroz na folha de videira muro caiado de branco
e roseiras

gastronomias inexplicáveis contêm a vida e os pátios
aquela noite grega que não soubemos redigir
vespas bebendo da boca das torneiras

escrevo o poema que não lerás nunca
sobre a toalha de plástico da mesa suja
de azeite

a mão esquecida na vírgula acesa do cigarro
a minha solidão vincada a cotovelos no padrão da toalha
as crianças dormindo na

nitidez esquecida da telefonia

Miguel-Manso
Contra a manhã burra

Sunday, June 13, 2010

The only people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones who never yawn or say a commonplace thing, but burn, burn, burn, like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars and in the middle you see the blue centerlight pop and everybody goes "Awww!"

Jack Kerouac
On the Road

On ne se réveille jamais: les désirs entretiennent les rêves. La mort est un rêve, entre autres rêves qui perpétuent la vie, celui de séjourner dans le mythique. C'est du côté du réveil que se situe la mort. La vie est quelque chose de tout à fait impossible qui peut rêver de réveil absolu.

Jacques Lacan

«Improvisation: désir de mort, rêve et réveil»

Friday, June 11, 2010

nuit et brouillard


Qui de nous veille de cet étrange observatoire, pour nous avertir de la venue des nouveaux bourreaux? Ont-ils vraiment un autre visage que le nôtre? Quelque part parmi nous il reste des kapos chanceux, des chefs récupérés, des dénonciateurs inconnus…
Il y a tous ceux qui n’y croyaient pas, ou seulement de temps en temps.
Il y a nous qui regardons sincèrement ces ruines comme si le vieux monstre concentrationnaire était mort sous les décombres, qui feignons de reprendre espoir devant cette image qui s'éloigne, comme si on guérissait de la peste concentrationnaire, nous qui feignons de croire que tout cela est d’un seul temps et d’un seul pays,
et qui ne pensons pas à regarder autour de nous,
et qui n’entendons pas qu’on crie sans fin.

c'est quand on rêve sans le savoir


... Ecoute-moi. Comme toi, je connais l’oubli.
Comme toi, je suis douée de mémoire. Je connais l’oubli.
Comme toi, moi aussi, j’ai essayé de lutter de toutes mes forces contre l’oubli.
Comme toi, j’ai oublié.
Comme toi, j’ai désiré avoir une inconsolable mémoire, une mémoire d’ombres et de pierre.
J'ai lutté pour mon compte, de toutes mes forces, chaque jour, contre l'horreur de ne plus comprendre du tout le pourquoi de ce souvenir.
Comme toi, j'ai oublié.
Pourquoi nier l'évidente nécessité de la mémoire?

...grande combate entre covers...

















Thursday, June 10, 2010

no dia dele

Camões Dirige-se aos Seus Contemporâneos

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as matáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vosso netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos,porem flores no túmulo.

Jorge de Sena
Metamorfoses

Wednesday, June 9, 2010

Esercizio di Lingua

8 1/2 Festa do Cinema Italiano
Porto, Fundação de Serralves
18-20 de Junho



Sábado 19 de Junho | Fundação SERRALVES

18h00 ESERCIZIO DI LINGUA | DAVID BARROS | Portugal 2009 | 19' | Leg. PT

com a presença do realizador e da produtora Joana Rodrigues

Monday, June 7, 2010

...num dia de pólen e verão...

Fazer o quê de todo este mel,

Do crescendo das tardes em ouro, pólen e Verão,

Se a vida é, afinal, sempre e só

Dos outros, afinal, sempre e só

Transformada em vala comum,

Onde tentar o bem nosso

Pelo bem dos outros

Já não é sequer o mal menor,

Cansados de mais, brutos de mais,

Nós mesmos de mais,

Sempre morais numa impossível

E exaltada falta de paciência,

Numa pressurosa falta de ternura,

Nós sempre tão corredios,

Sardónicos até nos estertores,

Impérvios a essa música que nos tece

Perdidos em pleno espaço?

Há ainda um risco para nos salvar

De toda esta segurança,

Do geométrico, bancário, ergonómico

Acomodar-se da alma,

Do espírito flácido e famélico,

Algo que nos possa restituir

O gosto dos dias,

Esse que teremos na boca

Em hora extrema, ainda o gosto dos dias?


Nuno Morais

Últimos Poemas

Sunday, June 6, 2010

Sunday, May 23, 2010

e assim se faz o silêncio

(omarpareceazeite.blogspot.com)
PAULO EDUARDO CARVALHO (1965-2010)


A perda de Paulo Eduardo Carvalho para a cultura portuguesa e para a cultura do mundo é irreparável. E digo mundo, porque ele era conhecido além-fronteiras pelo saber que detinha sobre as artes do espectáculo, um saber que sempre partilhou com os outros. Alguns de vós hão-de ter visto peças traduzidas por ele, ou encenadas por ele, de Samuel Beckett, de Harold Pinter, de Brian Friel, de Caryl Churchill, de Frank McGuinness, de Martin Crimp… Paulo Eduardo era um professor imensamente dedicado, um tradutor originalíssimo, um investigador de mérito incomparável. Não chegam os adjectivos para descrever este homem do teatro que, tal como o teatro, era composto de mil valências e mil faces boas.

Como Goya, descrito por Jorge de Sena, o Paulo tinha “um coração cheio de fúria e de amor”. Por isso às suas qualidades científicas se somava todo um mundo de partilha de afectos. O seu desaparecimento é de uma violência inaudita. Era a pessoa mais extraordinária que eu conheci e eu tive o privilégio de o ter como o meu amigo mais querido. Preciso de o lembrar aqui.

Ana Luísa Amaral
_______________

PARA O PAULO

Era um dia de Verão, como o de hoje, e nós ali, sentados na minha varanda, falando de um dicionário que a Ana Gabriela e eu então preparávamos. Em cima da mesa, um cinzeiro muito raso. “Precisas de cinzeiros”, reparou o Paulo. E ia sugerindo entradas. Que tínhamos que incluir aquele termo, e que não nos devíamos esquecer daquele outro, ia dizendo. O calor desse dia era bom e, a certa altura, o Paulo acrescentou: “E ‘silêncio’, Ana? Num dicionário feminista, convinha que vocês tivessem uma entrada para ‘silêncio’”. “Tu achas?” – e fiquei a pensar. Depois, perguntei-lhe: “Olha, não queres fazer ‘o silêncio’ comigo?”. Olhámos um para o outro, e o Paulo, a rir, disse-me: “Ó Aninhas, isso dava poema”. Nunca houve no dicionário entrada para ‘silêncio’, mas houve, alguns dias depois, dois cinzeiros, um branco e outro castanho, grandes e protectores, que ele me deu e que nos serviram bem durante muito tempo. Houve ainda, como ele previu, poema, que eu lhe dediquei num livro, mas que, nas muitas leituras de poesia que fizemos juntos, nunca lemos em voz alta. A entrada para silêncio é esta nossa aqui, a da vida.


ALITERANDO SILÊNCIOS: COMPOSIÇÕES
Para o Paulo Eduardo

Não queres fazer o silêncio
comigo?
Sobressalta-se um pouco uma varanda
e acrescenta-se: vento

Por sobressalto: um vaso mal de frente
a estas flores,
ou um cinzeiro de pequeno porte,
ausente de cavalo,
e algum
desequilíbrio nessa mesa

Fazemos o silêncio,
se quiseres,
e assim mantemos tão aliteradas
as primeiras palavras

Está bem assim o vento,
não lhe mexas,
fica-lhe bem a asa sibilante
e ajuda à cinza que se alastra agora,
que transborda de lado na varanda
e desfaz a aridez dessa
roseira

Traz-me um pouco de paz
e ajuda-me a compor
esta paisagem

Vem fazer um silêncio,
porque o resto:
azul de som
– como em sereno
palco

Ana Luísa Amaral

A morte espreita-nos por detrás das evidências mais ou menos ideologizadas, desestabilizando as nossas verdades feitas, a nossa hierarquia de prazeres e abusos, a medíocre ilusão de fazermos história. O nosso combate trava-se no território difuso do efémero, o mais irredutível dos traços definidores da arte. A sua sobrevida estará na memória, qualificada e selectiva, que suscitem os nossos espectáculos.

Ricardo Pais
à entrada de Ricardo Pais: Actos e Variedades
de Paulo Eduardo Carvalho

Friday, May 21, 2010

Paulo Eduardo Carvalho


Mesmo que não conheças nem o mês nem o lugar
caminha para o mar pelo verão

Ruy Belo

Hoje perdeu-se um grande homem do teatro, da literatura, da cultura.
Que nunca se perca a memória dele, porque grandes homens exigem enormes memórias.

como se morre?


Como se morre, Adolfo? Trinta e três
anos – uma idade perfeita – conheci-te,
soube de ti o dito e o não-dito, o que escreveste
e o que não escreveste. Por instantes,
os teus olhos cruzavam-se num viés de vesgo
que era um saber terrível de estar só no mundo
e não haver que valha a pena que se diga
sem destruir-se quanto em nossa vida é o pouco
indestrutível se guardado à força
num silêncio de exílio e de distância.
E todavia como estiveste no mundo, como
duramente bebeste toda a dor do mundo,
ou a fumaste em nuvens de cigarro que matavam
os teus pulmões possessos de asfixia.
Foste o estrangeiro e o exilado perfeito
e por todos nós que recusámos de um salto
por outras terras esta terra há séculos de outrem,
morreste em dignidade, sem queixas nem saudades
a queixa e a saudade mais pesadas
pesadas para o fundo, sem palavras
que as não há entendíveis aonde não se entende
a perfeição tranquila em desespero agudo
a que te deste num morrer sem voz

Jorge de Sena

Thursday, May 20, 2010


O valor das palavras na poesia é o de nos conduzirem ao ponto onde nos esquecemos delas.
O ponto onde nos esquecemos delas é onde nunca mais se pode ter repouso.
Natália Correia

Wednesday, May 19, 2010

o sangue para dentro das palavras

Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio de incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim

E bebe

Daniel Faria
Explicação das Árvores e de outros Animais

sunny music for sunny days

Tuesday, May 18, 2010

a arte erótica dos sábados

E ALL’ALBA MORIRÓ

A arte erótica dos sábados
Sentava-se ao café e esperava.
A cidade humedecida para lá dos vidros.

Quem colheria primeiro com os olhos
acres indecisos insistindo
no sinal assente: vamos os dois.
Para onde? O mar ao longe ouvia-se
trazido pela chuva, as luzes amarelas
cercavam as garrafas das vitrinas
na falsa segurança do anoitecer.

Súbito, sem o troco, já saía
a escora das horas que viriam,
caminhou para a porta giratória
aceitou abrigar-se ao guarda-chuva.

Trocaram nomes
podiam ser fingidos mas continham
uma designação da carne,
uma alegria cruzando-se no tráfico,
o prenúncio de mãos incertas
tirando o corpo do seu escuro.

Joaquim Manuel Magalhães

Monday, May 17, 2010

Wednesday, May 12, 2010

morte em veneza



De muitas coisas se pode morrer
em Veneza
De velhice de susto
de peste

ou de beleza

Jorge Sousa Braga

Friday, May 7, 2010

penumbra de la paloma


Ferdinando Scianna
Sant'Elmo


UN PATIO

Con la tarde
se cansaron los dos o tres colores del patio.
Esa noche, la luna, el claro círculo,
no domina el espacio.
Patio, cielo encauzado.
El patio es el declive
por el cual se derrama el cielo en la casa.
Serena,
la eternidad espera en la encrucijada de estrellas.
Grato es vivir en la amistad oscura
de un zaguán, de una parra y de un aljibe.

Jorge Luís Borges

Tuesday, May 4, 2010

Sunday, May 2, 2010

hoje...

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.

Daniel Faria
Homens Que São Como Lugares Mal Situados
1998

Saturday, May 1, 2010

Friday, April 30, 2010

regresso a Juarroz II

Si conociéramos el punto
donde va a romperse algo,
donde se cortará el hilo de los besos,
donde una mirada dejará de encontrarse con otra mirada,
donde el corazón saltará hacia otro sitio,
podríamos poner otro punto sobre ese punto
o por lo menos acompañarlo al romperse.

Si conociéramos el punto
donde algo va a fundirse con algo,
donde el desierto se encontrará con la lluvia,
donde el abrazo se tocará con la vida,
donde mi muerte se aproximara a la tuya,
podríamos desenvolver ese punto como una serpentina
o por lo menos cantarlo hasta morirnos.

Si conociéramos el punto
donde algo será siempre ese algo,
donde el hueso no olvidará a la carne,
donde la fuente es madre de otra fuente,
donde el pasado nunca será pasado,
podríamos dejar sólo ese punto y borrar todos los otros
o guardarlo por lo menos en un lugar más seguro.

Roberto Juarroz, Poesía Vertical IV

regresso a Juarroz

Algún día encontraré una palabra
que penetre en tu vientre y lo fecunde,
que se pare en tu seno
como una mano abierta y cerrada al mismo tiempo.

Hallaré una palabra
que detenga tu cuerpo y lo dé vuelta,
que contenga tu cuerpo
y abra tus ojos como un dios sin nubes
y te use tu saliva
y te doble las piernas.
Tú tal vez no la escuches
o tal vez no la comprendas.
No será necesario.
Irá por tu interior como una rueda
recorriéndote al fin de punta a punta,
mujer mía y no mía,
y no se detendrá ni cuando mueras.

*

Una red de mirada
mantiene unido al mundo,
no lo deja caerse.
Y aunque yo no sepa qué pasa con los ciegos,
mis ojos van a apoyarse en una espalda
que puede ser de dios.
Sin embargo,
ellos buscan otra red, otro hilo,
que anda cerrando ojos con un traje prestado
y descuelga una lluvia ya sin suelo ni cielo.
Mis ojos buscan eso
que nos hace sacarnos los zapatos
para ver si hay algo más sosteniéndonos debajo
o inventar un pájaro
para averiguar si existe el aire
o crear un mundo
para saber si hay dios
o ponernos el sombrero
para comprobar que existimos.

Roberto Juarroz, Poesía Vertical I

Wednesday, April 21, 2010

music & lyrics

Words can relay nice
They can cut you open

I think I might’ve inhale you
I could feel you behind my eyes

I could feel you floating in me




Monday, April 19, 2010

...e se de repente uma vontade incontrolável de ler Herberto Helder...

O AMOR EM VISITA

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

Herberto Helder