Wednesday, December 22, 2010

Saudade, Murilo, Saudade

Maria da Saudade Cortesão Mendes, in memoriam

CARTA DE NATAL A MURILO MENDES

Querido Murilo: será mesmo possível
Que você este ano não chegue no Verão
Que seu telefonema não soe na manhã de Julho
Que não venha partilhar o vinho e o pão

Como eu só o via nessa quadra do ano
Não vejo a sua ausência dia-a-dia
Mas em tempo mais fundo que o quotidiano

Descubro a sua ausência devagar
Sem mesmo a ter ainda compreendido
Seria bom Murilo conversar
Neste dia confuso e dividido

Hoje escrevo porém para a Saudade
- Nome que diz permanência do perdido
Para ligar o eterno ao tempo ido
E em Murilo pensar com claridade -

E o poema vai em vez deste postal
Em que eu nesta quadra respondia
- Escrito mesmo na margem do jornal
Na baixa - entre as compras de Natal

Para ligar o eterno a este dia.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Lisboa, 22 de Dezembro de 1975

Wednesday, December 15, 2010

Degullar

A vida muda como a cor dos frutos
lentamente
e para sempre
A vida muda como a flor em fruto
velozmente
A vida muda como a água em folhas
o sonho em luz elétrica
a rosa desembrulha do carbono
o pássaro, da boca
mas
quando for tempo
E é tempo todo tempo
mas
não basta um século para fazer a pétala
que um só minuto faz
ou não
mas
a vida muda
a vida muda o morto em multidão

Ferreira Gullar, Dentro da Noite Veloz

Monday, December 13, 2010

Friday, December 10, 2010

Mozart

Requiem de Mozart

Ouço-te, ó música, subir aguda
à convergente solidão gelada.
Ouço-te, ó música, chegar desnuda
ao vácuo centro, aonde, sustentada
e da esférica treva rodeada,
tu resplandeces e cintilas muda
como o silente gesto, a mão espalmada
por sobre a solidão que amante exsuda
e lacrimosa escorre pelo espaço
além de que só luz grita o pavor.
Ouço-te lá pousada, equidistante
desse clarão cuja doçura é de aço
como do frágil mas potente amor
que em teu ouvir-te queda esvoaçante.

Ó música da morte, ó vozes tantas
e tão agudas, que o estertor se cala.
Ó música da carne amargurada
de tanto ter perdido que ora esquece.
Ó música da morte, ah quantas, quantas
mortes gritaram no que em ti não fala.
Ó música da mente espedaçada
de tanto ter sonhado o que entretece,
sem cor e sem sentido, no fervor
de sublimar-se nesse além que és tu.
Ó vida feita uma detida morte.
Ó morte feita um inocente amor.
Amor que as asas sobre o corpo nu
fecha tranquilas no possuir da sorte.

Jorge de Sena

Thursday, December 9, 2010

09.12.1977