Monday, June 18, 2007

A banalidade do mal, a tentação do bem

Não queríamos ir a Auschwitz mas também não queríamos não ir a Auschwitz.

Tinha havido sol todos os dias em Cracóvia e nesse dia choveu - mas isso era o mínimo que nos podia acontecer, eu teria aceitado uma trovoada, uma tempestade, um tremor de terra, um dilúvio, eventualmente até uma forma menor de apocalipse. Estranhas coisas aconteceram em Auschwitz, estranhas coisas deviam (ou pelo menos podiam, seria absolutamente legítimo, absolutamente inquestionável) acontecer a quem entra em Auschwitz, é assim nos filmes quando há intrusos em casas assombradas e não há outra maneira de pensar em Auschwitz a não ser como uma enorme, descomunal, casa assombrada.

Agora íamos entrar e tínhamos medo: medo de estar lá, medo de não estar lá (lá, à altura daquilo, mesmo que aquilo fosse no fundo uma coisa muito baixa, muito primária) e ao mesmo tempo quem éramos nós para ter medo (ninguém, não éramos ninguém), mas também, ao mesmo tempo, quem éramos nós para estar ali.

Deve haver maneiras certas e maneiras erradas de estar em Auschwitz, mas nunca acreditámos muito nisso: Auschwitz é um sítio em que está tudo mal, haver museu e não haver museu, haver turistas e não haver turistas, haver restaurante e não haver restaurante, pagar para entrar e não pagar para entrar. Mas sobretudo Auschwitz também é um sítio onde está tudo bem, como aprendemos há uns anos, quando um sobrevivente do Holocausto ganhou o Nobel da Literatura por dizer que foi feliz nos campos de concentração.

Ele disse «belo campo de concentração».
Ele disse sim, «eu gostaria de viver um pouco mais neste belo campo de concentração».

E dependendo da maneira como olhamos para aquilo - as casas de pedra idênticas de Auschwitz 1, as, não conseguimos dizer lindas, barracas de Auschwitz 2 -, dependendo da maneira como vemos ali uma história de sobrevivência, é capaz de ter razão (e também é capaz de não ter, porque Auschwitz é o grau zero da razão, ou pelo menos o grau zero da moral).

Mas sim, é capaz de ter razão. Quem somos nós para dizer o contrário?

Inês Nadais, «Auschwitz 2», Público-Ípsilon
Sexta-feira 15 de Junho de 2007


VER





Alain Resnais, Nuit et Brouillard


Errol Morris, Mr. Death



LER


Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém:
Relatório sobre a Banalidade do Mal
Tzvetan Todorov, Memória do Mal, Tentação do Bem


PENSAR


não há absurdo que não se possa viver naturalmente, e, no meu caminho, já sei, espreita-me qual armadilha inelutável a felicidade. [...] Toda a gente me pergunta só pelas vicissitudes, pelos «horrores»: todavia, no que me diz respeito, é talvez essa a experiência mais memorável. Sim, é disso, da felicidade dos campos de concentração, que eu lhes falarei na próxima vez, quando me perguntarem. Se é que perguntam. E se eu próprio não me esqueci.

Quando alguém escreve sobre Auschwitz deve saber que Auschwitz, pelo menos em certo sentido, deixou a literatura em suspenso. Sobre Auschwitz só se pode escrever um romance negro ou - desculpem a expressão - um folhetim cuja acção começa ali e ainda não acabou. Com isto quero dizer que desde Auschwitz não aconteceu nada capaz de o suprimir ou impugnar.


A natureza humana pode virar-se contra a vida humana.

Imre Kertész


O que resta de um homem quando todas as condições de existência humana lhe são subtraídas?


exactamente porque o Lager é uma grande máquina de nos reduzir a animais, nós não devemos tornar-nos animais.
Primo Levi
«Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos depois»
Elie Wiesel

2 comments:

Anonymous said...

Oi, ainda sobre o texto da inês nadais, do público... "eu teria "aceitado" uma trovoada????? esta forma exsite?

Joana Blu said...

não só existe como está certa: «ser aceite», «ter aceitado». é mesmo assim, embora soe mal...